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CRIAÇÃO, MONITORAMENTO E AVALIAÇÃO DE UMA POLÍTICA NACIONAL PRÓ CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO BRASIL

Resumo histórico 2001-2018

Claudia Cabral*

O direito a uma família é pedra basilar na formação e no desenvolvimento saudável do indivíduo. É na família e na comunidade que temos as primeiras chances de conhecer as relações de afeto, segurança, respeito e onde aprendemos a viver em sociedade.

Crescer em família e em uma comunidade é um direito de toda criança e todo adolescente brasileiros, independente das condições econômicas e sociais em que vive. Embora ainda existam muitos desafios nesse tema, o Brasil é referência mundial na caminhada pela promoção do direito à convivência familiar e comunitária. O diferencial tem sido uma ampla mobilização social, com a participação de diferentes setores e pautada na construção e disseminação de conhecimento sobre os direitos humanos de crianças e adolescentes.

Essa mobilização teve início em 2003, para colocar em prática o que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e outras normativas já haviam estabelecido. Embora o ECA fosse de 1990, mais de dez anos depois ainda prevalecia a falta de investimento na família, o foco na institucionalização e a realização do Acolhimento em desacordo com a lei, não respeitando a excepcionalidade e brevidade das medidas de afastamento da família de origem.

Entre o final de 2001 e o início de 2002, uma Caravana da Comissão dos Direitos Humanos da Câmara Federal percorreu 36 abrigos em oito estados brasileiros e no Distrito Federal. Estava acompanhada de equipes do jornal Correio Brasiliense, que publicou os relatos coletados em uma reportagem especial intitulada “Órfãos do Brasil”. Na época, a reportagem indicava 200 mil crianças e adolescentes vivendo em orfanatos, negligenciadas pelas famílias e pelo poder publico.

Neste mesmo período, o mundo estava voltado para as crianças e adolescentes afetados pelo tsunami na Indonésia. As Nações Unidas, preocupadas com o Acolhimento das crianças orientais e as buscas mundiais por uma adoção, deliberaram pela elaboração de uma normativa internacional sobre Cuidados Alternativos às crianças e adolescentes separados ou em vias de se separar de suas famílias - Guidelines for Alternative Care. Na ocasião, em 2003, a então responsável pelo tema da Proteção Especial no UNICEF Brasil oferece apoio para a investigação nacional desta temática.

Os dados da Caravana e o incentivo do UNICEF mobilizaram ações conjuntas do então Departamento da Criança e do Adolescente, vinculado ao Ministério de Justiça, da Secretaria de Estado de Assistência Social, (ligada ao antigo Ministério da Previdência e Assistência Social) e do Fundo das Nações Unidas para Infância (UNICEF).

Surge assim o interesse político em se estudar a situação e disseminar  novas diretrizes, construindo um entendimento compartilhado sobre o tema do direito à Convivência familiar e Comunitária.

Foi formado um Comitê Nacional para Reordenamento de Abrigos e planejada a realização de um levantamento nacional sobre essas instituições. O Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) esteve à frente da pesquisa, que alcançou 589 abrigos da Rede de Serviço de Ação Continuada (Rede SAC), que recebiam subsídios do Governo Federal. Àquela altura, constatou-se a dificuldade em realizar um Censo das instituições, já que não havia clareza e informações sobre as organizações que prestavam acolhimento a crianças e adolescentes, fato já em si problemático. A pesquisa “O Direito à Convivência Familiar e Comunitária: os abrigos para crianças e adolescentes no Brasil”, divulgada em 2004, mostrou que a maior parte das unidades estavam localizadas no Sudeste (49,1%). De modo geral, eram abrigos não-governamentais (68,3%), com significativa influência religiosa (67,2%), predominantemente católica.

Esse cenário trazia importantes desafios para a organização dos serviços como políticas públicas, para que se superasse a lógica da caridade, alcançando a garantia de direitos estabelecidos em lei. O Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece o atendimento em grupos pequenos, em ambientes semelhantes a uma casa. A pesquisa mostrou que praticamente só a metade dos estabelecimentos atendia até 25 crianças. Alguns funcionavam com um contingente de mais de 80 crianças.

Os abrigos pesquisados atendiam cerca de 20 mil crianças e adolescentes na época da pesquisa. A maioria meninos (58,5%), pretos e pardos (63%) e com idade entre 7 e 15 anos (61,3%). Aproximadamente a metade estava abrigada por um período de mais de dois anos. A grande maioria tinha família (86,7%), mas vivia separada delas. Desses, 58,2% mantinham vínculos familiares e apenas 5,8% estavam impedidos judicialmente de contato com as famílias. A pobreza era o motivo mais citado para a chegada ao abrigo.

 O interesse político pelo tema, neste inicio dos anos 2000, permitiu uma colaboração inédita entre Assistência Social, Direitos Humanos e Sociedade Civil  Organizada com vistas à escrita de uma polícia nacional de referência neste tema.

O Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária foi aprovado em 2006, no âmbito de dois Conselhos Nacionais, o dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) e de Assistência Social (CNAS) e representou um importante passo na materialização desse direito no campo das políticas públicas.

 Construído a partir de um amplo processo participativo, o Plano trouxe reflexões importantes tais como: a importância do Acolhimento individualizado, o aprofundamento do trabalho com a família de origem, a construção de um ‘cardápio de opções’ com diferentes modalidades de Acolhimento e com a inclusão fundamental do serviço de Famílias Acolhedoras como uma proposta alternativa ao Abrigamento (até então a única forma de Acolhimento vigente).

O processo participativo de elaboração do Plano se deu por meio de 3 Câmaras Temáticas: Prevenção, Acolhimentos Familiar e Institucional e Adoção.

A então Secretaria de Estado de Assistência Social, (ligada ao antigo Ministério da Previdência e Assistência Social) assumiu a Câmara Temática da Prevenção sob a perspectiva da Proteção Social Básica em diálogo com vários outros Ministérios, principalmente os da Educação e Saúde. Contou com a consultoria da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG.

O Fundo das Nações Unidas para Infância- UNICEF se responsabilizou pela Câmara Temática dos Acolhimentos (Proteção Especial de Alta Complexidade) com o apoio da consultoria da Associação Brasileira Terra dos Homens - ABTH e criou um grupo de trabalho representado por ONGs em diálogo com vários profissionais do Poder Executivo e Judiciário.

O Departamento da Criança e do Adolescente, vinculado ao Ministério de Justiça liderou os trabalhos da Câmara referente à Adoção, por meio de consultoria com a Universidade de São Paulo- USP, incluindo atores do judiciário no debate.

Foram diversos encontros na fase de elaboração do primeiro rascunho a ser enviado para consulta governamental e depois pública. O processo foi extremamente participativo e com forte fundamentação teórico-prática, o que criou um diferencial na elaboração de políticas e planos nacionais. A participação se deu não apenas no nível de consultas, mas no nível da elaboração dos insumos do texto base. Esta metodologia participativa apontava para uma necessidade premente de um alinhamento conceitual num território tão vasto como o do Brasil. Foi a partir desta necessidade que nasceu o Grupo de Trabalho pro Convivência Familiar e Comunitária – GT Nacional pró CFC, uma parceria inicial entre o UNICEF e a ONG Terra dos homens. O conteúdo trabalhado pelo GT Nacional foi base para as Orientações técnicas do Ministério de Desenvolvimento Social, lançada em 2009, e norteadora para os serviços de alta complexidade no país. Ao longo dos anos este GT se transformou no atual Movimento Nacional pró Convivência Familiar e Comunitária - MNpCFC.

O Brasil se torna referência  no tema  e se destaca no cenário mundial ao sediar, em Agosto de 2006, a consulta inter governamental mundial sobre o Guidelines for Alternative Care, acima mencionado.

Mais de uma década após a aprovação desse importante Plano, muitos passos já foram dados para valorizar a esfera familiar como um espaço de segurança para as crianças, fazendo ressoar a importância das relações sociais que se constituem a partir desse primeiro núcleo, seja ele consanguíneo ou não.

Hoje, em 2018, diminuiu pela metade o número de crianças e adolescentes em Acolhimento e a opção por Serviços de Família Acolhedora está em crescimento. As mudanças são visíveis. Não há mais Abrigos (Educandários) com 50 crianças ou mais. O tempo do acolhimento é controlado pela justiça, que prevê 18 meses como período máximo de afastamento do convívio familiar definitivo. Há inúmeros exemplos bem sucedidos de programas e serviços de Reintegração Familiar. O discurso da equidade e da inclusão está mais presente. A Sociedade Civil Organizada é muito mais atuante e reconhecida. A psicologia se faz mais presente na área social e jurídica, disseminando estudos sobre infância, vínculos e interações familiares.

Mas o cenário é outro e precisa ser reavaliado. A violência comunitária aumentou consideravelmente. Novas drogas, extremamente prejudiciais e desafiadoras aos adictos e suas famílias, entram em jogo.  A circulação migratória de famílias inteiras é hoje uma realidade recorrente. O numero de mães e pais em presídios, aumenta. Abuso e exploração sexual continuam presentes, como ao longo de toda historia da humanidade. A crença de que famílias pobres e violentas são  ‘incapazes de educar’, permanece.

Uma reavaliação do Plano Nacional da Convivência Familiar e Comunitária se inicia por iniciativa da Sociedade Civil Organizada que continua sendo referência no Brasil, promovendo reflexões e mudanças de impacto estruturante.  Um processo extremamente participativo se instala neste segundo semestre de 2018 para dar inicio a este monitoramento e avaliação.

Que cada um de nós esteja atento para participar e contribuir com deste debate!

 

Referencias Bibliográficas:

- IPEA/DISOC (2003) Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC

- Brasil (2005) Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária, Brasília, SEDH/DCA.

- Brasil (2009). Orientações Técnicas – Serviço de Acolhimento para Crianças e Adolescentes, Brasília, MDS/CONANDA/CNAS.

- Terra dos Homens (2009). Grupo de Trabalho Nacional Pró - Convivência Familiar e Comunitária – Fazendo Valer um Direito, Rio de Janeiro, Ed. Associação Brasileira terra dos Homens.

- Terra dos Homens (2011). Cultivando Sementes – Criação de Redes para Implementação de Políticas públicas de Atenção à Criança e ao Adolescente, Rio de Janeiro, Ed. Associação Brasileira terra dos Homens.

- Terra dos Homens (2013). Saberes e Afetos em Redes – Pelos Direitos da Criança e do Adolescente, Rio de Janeiro, Ed. Associação Brasileira Terra dos Homens.

- Terra dos Homens (2017). A Mobilização Nacional Pro-Convivência Familiar e Comunitária, Rio de Janeiro, Ed. Associação Brasileira terra dos Homens.

 

(*) Psicóloga, especialização em terapia de Família e pós graduação em Pedagogia na França, Diretora Executiva da Associação Brasileira Terra dos homens, idealizadora e membro fundadora do GT Nacional e do Movimento Nacional pró Convivência Familiar e Comunitária/Brasil, Consultora UNICEF /Brasil, Membro do Conselho consultivo da RELAF (Rede latino americana de Acolhimento Familiar), consultora do Serviço Social Internacional de Genebra, Presidente da Rede Internacional Family for Every Child.